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O CONTRATO

FALANDO SÉRIO
A seguir, devidamente “ficcionada” para torná-la mais verossímil, uma história que aconteceu por aqui e por agora.
Casal sem filhos, recém-chegado à cidade, procura empregada doméstica que cuide da limpeza de um apartamento de três quartos e do preparo das refeições diárias. Trivial variado. Pedem-se referências e experiência. Oito horas diárias de serviço. Descanso semanal aos sábados e domingos. Registro em carteira. INSS, FGTS e 13º. Férias anuais com gratificação correspondente. Paga-se bem.
O extenso anúncio equivalia a um contrato de trabalho entre as partes. Tudo nos conformes da legislação pertinente. Talvez faltasse algum detalhe a ser acertado posteriormente, sintonia fina, o que ficaria para uma conversa pessoal da dona de casa com as candidatas.
O contato inicial e a triagem foram feitos por telefone, dada a experiência da contratante. Classificou-se a Marcelina.
Tudo ficou combinado de antemão, inclusive o mais importante: o salário. A aspirante ao emprego era realmente qualificada, apresentou os números de telefones da filha da ex-patroa que, coitada – a ex-patroa, bem entendido – tinha morrido havia pouco. Ao telefone, a filha teceu os maiores encômios (!) sobre a “moça” Marcelina, que só ficou sem trabalho por força do infausto acontecimento aqui aludido.
Comunicou que sua carteira profissional estava assinada, mostrando os serviços prestados à macróbia senhora durante os últimos anos. A admissão fora assinada pelo marido, que falecera anteriormente, fazendo com que ela viesse a servir exclusivamente à velha matrona, fazendo as vezes de enfermeira e acompanhante. A baixa tinha sido dada pela própria filha, que morava em São Paulo. Viera passar um tempo aqui, para tratar do inventário e da posterior venda da casa, do encaminhamento dos pertences da mãe a quem de direito e aos amigos mais íntimos, bem como para honrar compromissos assumidos pelos falecidos progenitores.
Nesse telefonema adiantou que a Marcelina tinha o segundo grau completo, era inteligente, asseada, honesta, discreta, mãe de família, dois filhos adolescentes, marido trabalhador. Para a velha senhora sua mãe lia livros de literatura da biblioteca da família. Enfim, seria uma bela contratação.
Escolhida entre uma dezena de candidatas, marcou-se o dia da apresentação num telefonema em que a dona de casa já lhe adiantara alguns costumes de sua casa, os horários de trabalho dela e do marido e outras tantas coisinhas.
– Tem uma coisa que eu preciso esclarecer à senhora e que pode, talvez, complicar a nossa relação ainda nem começada. É bom ficar tudo esclarecido direitinho para evitar qualquer tipo de constrangimento posterior.
A senhora pensou no pior, quem sabe: uma doença contagiosa, ou alguma restrição ao serviço, algum compromisso assumido durante o horário de trabalho, coisas que tais.
– Diga-me, Marcelina, de que se trata?
– Senhora, sou negra.
Por um bom par de minutos, sons de lágrimas (lágrimas emitem sons, sabiam?) foram ouvidos e trocados, sem que fosse desfeita a ligação. Sem palavras. Nada que pudesse ser dito. Tampouco aqui neste final.
Epílogo: Marcelina foi contratada!
Joinville, 25 de setembro de 2020.
Henrique Chiste Neto







  • Fontes: HENRIQUE CHISTE NETO

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